quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Katherine Mansfield / O canário



Katherine Mansfield
O canário



... Você vê aquele grande prego à direita da porta da frente? Dificilmente olho para ele, mesmo agora, e até hoje não tive vontade de arrancá-lo. Gostaria de pensar que ele fosse permanecer ali, mesmo depois de mim. Às vezes imagino as pessoas no futuro a dizerem: "Deve ter havido uma gaiola pendurada ali." E isso conforta-me; sinto que ele não está inteiramente esquecido.

... Você não pode avaliar como era maravilhoso o seu canto: não .cantava como os outros canários. E isto não é apenas fantasia minha. De minha janela, eu costumava ver as pessoas pararem em frente ao portão, para ouvir melhor, ou encostarem-se na cerca perto da falsa-laranjeira, um bocado de tempo, emocionadas. Suponho que você vá achar isso um absurdo — não acharia se o tivesse ouvido cantar —, mas parecia, realmente, que ele cantava as canções completas, com começo e fim.

... Por exemplo: à tarde, quando eu terminava o serviço, mudava de blusa e trazia minha costura para a varanda, ele costumava pular de um poleiro para o outro, bater contra as grades da gaiola, como se fosse para atrair minha atenção, bebia um gole d'água, tal como o faria um cantor, e punha-se a executar uma canção tão afinada que eu tinha de largar a agulha para ouvi-lo. Não sou capaz de descrevê-lo; bem que gostaria. Era sempre igual, toda tarde, e eu sentia que compreendia cada nota emitida.

... Eu o amava. Como eu o amava! Talvez não importe muito que coisa amamos neste mundo. Mas devemos amar alguma coisa. É claro, eu tinha minha casinha e o jardim, mas, por algumas razões, não era o bastante. Flores são maravilhosas, mas não sabem demonstrar simpatia. Naquela ocasião eu amava a Estrela Dalva. Isto lhe parece uma tolice? Eu tinha o costume de ir para o jardim, depois do pôr-do-sol, e esperá-la até que brilhasse por cima do eucalipto escuro. Eu costumava murmurar: "Aí está você, minha querida." E exatamente nesse instante ela parecia brilhar só para mim. Ela parecia compreender isso... alguma coisa que é como um anseio, mas não é um anseio. Ou lamento — sim, é mais parecido com lamento. E, no entanto, lamento por quê? Eu tenho tantos motivos para ser grata!

... Mas depois que ele entrou em minha vida, esqueci a Estrela Dalva; não precisei mais dela. Mas foi estranho. Quando o chinês chegou à minha porta vendendo pássaros, ele, em sua pequena gaiola, em vez de se debater contra as grades, como aqueles pobres pintassilgos, soltou um trinado fraco e curto, e eu me vi dizendo, como havia dito para a estrela por cima do eucalipto: "Aí está você, meu querido." Desde aquele momento, ele foi meu.

... Até hoje me surpreendo, quando me lembro de como ele e eu partilhávamos nossas vidas. Na hora em que eu descia, pela manhã, e retirava a toalha que cobria sua gaiola, ele saudava-me com uma notinha sonolenta. Sentia que ele queria dizer: "Tia! Tia!" Então, pendurava a gaiola no prego do lado de fora, enquanto servia o café aos meus três rapazes, e nunca o levava de volta para dentro enquanto não tínhamos a casa só para nós dois. Depois, enquanto eu lavava a louça, era uma diversão completa. Eu abria um jornal sobre um canto da mesa e, logo depois que eu punha a gaiola sobre o jornal, ele costumava bater as asas desesperadamente, como se não soubesse o que ia acontecer. "Você é um perfeito ator", eu gostava de dizer-lhe com ar de zangada. Eu raspava o fundo da gaiola, espalhava areia em cima, renovava a água e o alpiste das latinhas, espetava um pedaço de couve e meia pimenta malagueta na grade. Tenho plena certeza de que ele compreendia e apreciava cada item dessa pequena operação. Sabe, ele era por natureza muito asseado. Nunca havia uma sujeira em seu poleiro. E era preciso ver como gostava de se banhar, para se perceber que ele tinha verdadeira paixão por limpeza. Sua banheira era colocada por último; no mesmo instante ele pulava nela. Primeiro batia uma asa, depois a outra; então, mergulhava a cabeça e umedecia as penas do peito. Gotas d'água espalhavam-se por toda a cozinha, mas ele ainda não queria parar. Eu costumava dizer-lhe: "Agora basta. Você está apenas se exibindo." E por fim ele pulava para fora e, de pé sobre uma das pernas, começava a se bicar para enxugar-se. Finalmente sacudia-se, dava uma pirueta, um gorjeio, levantava a cabeça e... Ah! como dói lembrar. Nessa hora eu estava sempre enxugando as facas e quase me convencia de que elas também cantavam quando eu as esfregava para brilharem em cima da tábua.

... Companhia! É isso, veja, isso é o que ele era. Uma companhia perfeita. Se você algum dia viveu só, compreenderá o quanto isto é precioso. É verdade que havia meus três rapazes, que chegavam para o jantar todas as tardes e algumas vezes ficavam na sala, lendo o jornal. Mas eu não podia esperar que eles se interessassem pelas pequenas coisas corriqueiras do meu dia-a-dia. Por que se interessariam? Eu nada era para eles. Na verdade, eu os ouvira certa vez na escada referindo-se a mim como "O espantalho". Não importa. Não tem importância. Eu entendo muito bem. Eles são jovens. Por que haveria eu de ficar ressentida? Mas lembro-me de me sentir grata por não estar inteiramente só, naquela noite. Eu lhe disse, depois que os rapazes tinham ido embora. Eu lhe disse: "Você sabe de que nome eles chamam a Tia?" E ele deixou cair a cabeça para um lado e olhou-me com seu olhinho brilhante até que eu não pude conter o riso. Aquilo pareceu diverti-lo.

... Você já criou pássaros? Se não, tudo isto vai talvez parecer-lhe exagerado. As pessoas têm idéia de que os pássaros são seres sem coração, pequenas criaturas frias, ao contrário de cães e gatos: Minha lavadeira costumava dizer, nas segundas-feiras, quando queria saber por que eu não criava "um bonito fox-terrier": "Ter um canário não traz conforto, senhora." Não é verdade. É um grande engano. Lembro-me de uma noite. Eu tinha tido um sonho horrível — os sonhos podem ser muito cruéis — do qual, mesmo depois de acordada, não podia livrar-me. Então, vesti minha camisola e desci à cozinha, para tomar um copo d'água. Era uma noite de inverno e chovia forte. Acho que eu estava ainda meio adormecida. Pela janela da cozinha, que não tinha veneziana, a escuridão parecia estar olhando fixamente para dentro, espionando. E de repente senti que era insuportável não ter alguém a quem pudesse dizer: "Tive um sonho tão horrível" — ou "Defenda-me da escuridão." Até mesmo cobri meu rosto, por um momento. Então veio o agradável som "Psiu! Psiu!" A gaiola estava em cima da mesa, e o pano que a cobria havia escorregado, deixando uma fenda, por onde entrava um raio de luz. "Psiu, psiu!" — disse o encantador bichinho outra vez, docemente, como para dizer "Estou aqui, Tia! Estou aqui!" Aquilo soou tão agradável e confortante para mim, que quase chorei.

... E agora ele se foi. Nunca mais terei um outro pássaro, nem qualquer outro animal de estimação. Como poderia ter? Quando o encontrei, deitado de costas, os olhos turvos, as patinhas retorcidas, quando percebi que nunca mais ouviria seu canto tão querido, alguma coisa pareceu morrer em mim. Meu coração ficou vazio, como se fosse a gaiola dele. Eu hei de superar isso. É claro. Preciso fazê-lo. Com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa. Dizem que eu sempre estou bem-disposta, e têm razão. Graças a Deus, estou.

... Contudo, sem ser mórbida e mexendo nas lembranças, devo confessar que vejo nisto alguma coisa de triste na vida. Não me refiro à tristeza que todos nós conhecemos, como a doença, a pobreza e a morte. Não, é algo diferente. É lá no fundo, bem no fundo, faz parte da gente, como a respiração. Por mais que trabalhe, por mais que me canse, basta parar para sentir que essa coisa está lá, esperando. Muitas vezes eu me pergunto se todo mundo sente do mesmo jeito. Nunca se pode saber. Mas não é extraordinário que dentro de seu canto alegre, doce, tudo o que eu ouvia era: tristeza? ah, o que é isto?






terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Projeto para ler como um escritor



PROJETO PARA LER COMO UM ESCRITOr

JANEIRO 6, 2014 | LUALIMAVERDE

63_crusoeProjeto Romances Ingleses Setecentistas
Sempre que leio um livro que se refere a outros livros fico curiosa para conhecê-los e isso acontece muito com livros de teoria ou análise literária. Há alguns meses tenho lido A Ascensão do Romance, de Ian Watt, e me propus a ler os 5 romances de que o autor trata: Robinson Crusoé e Moll Flanders, de Daniel Defoe; Pamela e Clarissa, de Samuel Richardson e Tom Jones, de Henry Fielding. Assim eu poderia conhecer aqueles que são considerados por muitos os primeiros representantes do gênero romance. Com Daniel Defoe foi tranqüilo: apesar deMoll Flanders ter uma história episódica demais, consegui ler sem maiores problemas.Robinson Crusoé foi uma surpresa, o autor consegue prender o leitor para o cotidiano do personagem, mesmo que haja pouca ação. É um livro mais de reflexão sobre a vida, solidão e ambição do que de aventuras, como eu julgava que fosse.
Já Pamela, de Richardson, foi um exercício de paciência. É um romance epistolar sobre uma garota que tenta fugir das investidas do patrão e desabafa através de cartas para seus pais. Como eu comentei no Goodreads, é uma espécie de A Bela e a Fera do século XVIII e acabei desistindo da leitura, coisa que detesto fazer. Por conta disso, não devo ler Clarissa também, pois apesar de ser considerado bem melhor que Pamela, não estou querendo encarar suas centenas de páginas em inglês (acredito que não há edição brasileira), ainda mais sabendo que a história é semelhante à de Pamela. Agora só falta Tom Jones, do Fielding, que irei ler assim que conseguir uma cópia.
01_escritorProjeto Para ler como um escritor
Outro livro que está me servindo de guia de leitura é o Para ler como um escritor, de Francine Prose. Estou pegando carona num projeto pessoal da Juliana Brina e aos poucos vou comentando por aqui o que eu for conseguindo ler de suas indicações. Serão comentários breves e não irei falar sobre o livro em si porque a Juliana já está fazendo ótimos vídeos sobre o livro e as obras contempladas nele. Basta dizer que é um livro sobre leitura atenta, uma guia para leitores e aspirantes a escritores prestarem atenção em detalhes dos textos literários. Para minha grande surpresa, o livro já me jogou para uma direção bem bacana, que é a leitura de contos, gênero que tendo a torcer o nariz. Comentarei em seguida alguns dos que já li, avisando de antemão que haverá spoilers.
03_flannPara começar, um dos que mais me deixou encantada: “Um homem bom é difícil de encontrar”, de Flannery O’Connor. É a história de uma família que sai de férias em direção à Flórida e no meio do caminho, por uma intervenção equivocada da avó da família, acabam sofrendo um acidente que os levam a uma tragédia ainda maior: o encontro com um psicopata que está a solta. Você percebe, ao ler o conto, que a autora pensa em cada detalhe, como ela é cuidadosa e consciente do que está fazendo e como são bonitas as antecipações que ela dá ao leitor do que vai acontecer. É interessante perceber como a personagem da avó prepara toda a situação, como se ela fosse realmente a fonte de toda a desgraça que vai cair sobre aquela família: ela evoca a existência do psicopata mostrando a notícia sobre ele no jornal; ela concorda em fazer a viagem, mesmo sendo contra; ela coloca violetas no peito para o caso de acidente pensarem que ela é distinta; ela leva o gato escondido; ela leva a família a um lugar inexistente e não tem coragem de dizer que estava enganada…
A impressão que tive, logo quando a família pega a estrada errada, foi a de que é como se estivéssemos dentro de uma fantasia da avó, uma fantasia daquelas que as pessoas têm de que aconteça uma desgraça só para que elas provem que estavam certas. É emblemático ela ser a última personagem a morrer, ou mesmo a visão do carro preto do assassino chegando ao longe, com a aparência de um carro fúnebre, como se a própria morte chegasse para levá-los. Pode-se pensar também em destino, um destino implacável, um castigo que mostra que “ser bom” não é algo tão simples ou superficial como pensa a avó, não é apenas rezar e parecer uma senhora distinta. Mais simbólico ainda é ela ser julgada pelo Desajustado no final, que comenta que ela seria realmente uma pessoa muito boa se estivesse o tempo todo sob a mira de uma arma. E essa dicotomia do ser humano, ser bom ou ser mau, bem como o que é justo ou injusto, é resumida numa fala dele e lhe serve de justificativa para as coisas que ele faz: “não consigo encaixar as coisas para que tudo que eu fiz de errado corresponda a tudo que sofri de castigo”. A avó e a família também não, por mais que fossem pessoas egoístas e hipócritas, talvez não merecessem o que lhes acontece, mas é justamente essa a ironia do Desajustado e essa é a genialidade da O’Connor, que eu espero encontrar em seus outros contos.
02_mansfOutro conto indicado pela Prose é o “As filhas do falecido coronel”, da Katherine Mansfield, que conta a dificuldade de duas irmãs ao se depararem com a morte do pai, já que elas não sabem o que fazer com a liberdade conquistada. As personagens são duas solteironas que vivem como se fossem duas crianças. Em sua maneira de falar e em cada atitude cotidiana elas demonstram o medo que sentem do pai – mesmo depois que ele morre –, o medo da empregada, o medo da vida. Muito sutilmente a autora nos revela o quanto esse pai era tirano e o quanto as irmãs estão perdidas, como o tempo passou e o que restou para elas é pouco. Senti uma leve semelhança com os contos da Lygia Fagundes Telles, talvez pelo clima que ela constrói, por essas sutilezas que vão demonstrando as características dos personagens mais pelo que escondem do que pelo que mostram.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Katherine Mansfield / Felicidade e Outros Contos / Resenha

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Katherine Mansfield

Felicidade e Outros Contos

Terminei a leitura do livro “Felicidade e outros contos”, da escritora Katherine Mansfield, uma das minhas preferidas.  O livro é composto por oito contos, alguns eu já havia lido em outras traduções, outros foram novas leituras. Abaixo alguns comentários sobre os contos:
Felicidade: Esse conto é um dos mais famosos de Katherine Mansfield, pois através da personagem Bertha Young é possível captar o que é a felicidade, no sentido mais simples. A personagem principal é uma mulher comum, casada, com filhos e está contente porque irá receber visitas em sua casa. Me lembra um pouco a Mrs. Dalloway de Virginia Woolf, apesar do tom melancólico que não existe no conto de K. Mansfield.
Psicologia: é um conto que busca analisar a empatia que sentimos por alguém. Sabe aquela sensação boa de estar perto de alguém simplesmente por estar? Sem precisar dizer, explicar ou ir além? É isso.
Um dia de Reginald Peacock: Um dos mais interessantes do livro. Conta a história de um músico egocêntrico, suas aulas, suas apresentações e sua vida em família. Tudo com muito sarcasmo e humor. É excelente!
A pequena governanta: Este conto pode ser resumida por aquela sábia frase de nossos avós: “não fale com estranhos”! É ótimo.
As filhas do falecido coronel: Este conto eu não gosto muito, mas muitos dizem que é um dos melhores de Katherine. Como o título sugere, narra a histórias das filhas de um coronel que acabou de falecer e os impasses que elas precisam vencer entre elas e a sociedade da época.
Marriage à La mode: Uma mulher feliz demais, livre demais, despreocupada demais que fica um pouco (eu disse um pouco) dividida entre os seus amigos e o seu marido, que sempre viaja, causando uma ausência em sua vida que, então, os amigos sobrepõem.
Um tanto infantil, mas muito natural: A história de dois jovens que se apaixonam numa viagem de trem e de repente, plaft. Leiam, leiam, leiam.
O canário: Um conto que revela o que pode existir através do canto de um canário. É poético, singelo e triste.




sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Katherine Mansfield / Contos / Resenha

Katherine Mansfield


KATHERINE MANSFIELD
CONTOS
DEZEMBRO 27, 2014 | LUALIMAVERDE
02_mansfEsta coletânea de contos de Katherine Mansfield cobre textos de vários momentos de sua vida como escritora e nela é possível perceber uma certa diferença entre os primeiros e os últimos, já que a autora parece se preocupar mais e mais com a linguagem e com o mundo interior dos seus personagens.
Nos primeiros contos, existe uma tendência em retratar viagens, situações em cafés, hotéis e trens, ambientes com pessoas desconhecidas, estrangeiras. São momentos em que o personagem está muito atento ao seu redor, pois tudo é novo e estranho. As pessoas são inéditas e as circunstâncias, mesmo corriqueiras para quem é do local, são curiosas para quem é forasteiro. Em “Alemães comendo”, uma mulher inglesa, durante uma refeição num café ou pousada, se vê diante de uma atitude de superioridade de alguns alemães, pouco antes da Primeira Guerra. Já durante a guerra, temos “Uma viagem indiscreta”, um conto com atmosfera um tanto onírica, que inicia com uma viagem de trem e culmina em outro café: uma mulher se utiliza de alguns disfarces para encontrar-se com um jovem cabo.
“A pequena governanta” também se passa em grande parte durante uma viagem de trem, ainda que aqui essa viagem tenha uma importância maior, pois ela não serve apenas como um meio de chegar a um lugar, ela representa todas as mudanças que irão ocorrer na vida da personagem. É um conto cheio de símbolos e assinala bem o medo de uma mulher diante de um mundo governado pelos homens, mas também a esperança, a busca pela felicidade nas coisas simples. Com uma carga semelhante de ingenuidade à da pequena governanta, mas sem a desculpa da juventude, a “Srta. Brill” também busca ser feliz com as pequenas coisas, mas aqui ela se limita a observar a vida em vez de vivê-la. Uma triste história sobre solidão, assim como “Je ne parle pas français”, em que um jovem parisiense, supostamente escritor, conta sua história malfadada com um casal inglês.
“Prelúdio”, “Na Baía”, e “A Casa de Bonecas” compõem uma trilogia de contos ou noveletas baseadas na infância da autora na Nova Zelândia. Basicamente apresentam pequenos momentos familiares dos Fairfields: o casal Linda e Stanley Burnell, seus filhos, a mãe de Linda, a Sra. Fairfield, a irmã Beryl e os funcionários da casa. No primeiro acompanhamos a mudança deles da cidade para o campo. No segundo, um dos mais belos contos do livro, vemos o dia nascer e morrer na praia, quando a família está em alguma casa de veraneio. A narrativa guarda um tema que se repete: a vida das mulheres (e crianças) sem os homens, a liberdade feminina. E no último, o foco é nas crianças, o mundo infantil como espelho do mundo adulto: a revolução que causa a chegada de uma linda casa de bonecas para as meninas. Estes contos são marcados pelos problemas femininos da época que retrata, que não são tão diferentes dos de hoje: mulheres que têm filhos mas que não apreciam ser mães, mulheres que vivem a serviço de um “chefe de família”, mulheres que acreditam que só terão valor quando casarem.
O casamento, inclusive, também é tema em “Marriage à la mode” e “Conto de homem casado”. Ambos falam sobre máscaras na vida conjugal, e enquanto em um não sabemos o que é máscara e o que é verdadeiro, pois há uma personagem que acha mais importante alimentar sua vaidade que dar atenção ao marido que ama, em outro a máscara está bem clara, pois trata-se de um relato de alguém que vê muito claramente que seu casamento é apenas uma farsa. Infelizmente este conto é incompleto e assim como “A Mosca”, que conta da angústia de um pai que perdeu seu filho para a guerra, o leitor não tem como saber a que fim as histórias iriam chegar.
Por fim, um conto que já comentei aqui, “As filhas do falecido coronel”, que conta as reações de duas irmãs ao se depararem com a morte do pai, já que elas não sabem o que fazer com a liberdade conquistada. Assim como em vários outros contos da coletânea, o que mais percebemos é que aquilo que é mais importante nunca é dito, é sempre sugerido, subentendido. O essencial está sempre escondido nos pequenos gestos e Mansfield se mostra uma sábia ilusionista que mostra com uma mão enquanto esconde com a outra.
LUA LIMAVERDE
FICÇÕES DO INTERLÚNIO


quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Vinícius de Moraes / Soneto a Katherine Mansfield

Katherine Mansfield


Vinícius de Moraes
Soneto a Katherine Mansfield





O teu perfume, amada — em tuas cartas
Renasce, azul... — são tuas mãos sentidas!
Relembro-as brancas, leves, fenecidas
Pendendo ao longo de corolas fartas.

Relembro-as, vou... nas terras percorridas
Torno a aspirá-lo, aqui e ali desperto
Paro; e tão perto sinto-te, tão perto
Como se numa foram duas vidas.

Pranto, tão pouca dor! tanto quisera
Tanto rever-te, tanto!... e a primavera
Vem já tão próxima! ...(Nunca te apartas

Primavera, dos sonhos e das preces!)
E no perfume preso em tuas cartas
À primavera surges e esvaneces.


Vinicius de Moraes

Poesia Completa e Prosa
Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 250





quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Katherine Mansfield / Citações

Katherine Mansfield
Katherine Mansfield
Citações


Risque, risque qualquer coisa! Não se importe mais com as opiniões dos outros, com suas vozes. Faça a coisa mais difícil no mundo para você. Aja por si mesmo. Encare a verdade.


Se nós pudéssemos mudar nossa atitude, nós não apenas veríamos a vida de forma diferente, mas a própria vida se tornaria diferente.


Eu quero ao entender eu mesma, entender os outros. Eu quero ser tudo que sou capaz de me tornar.


segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

A sutileza dos contos de Katherine Mansfield perdura até hoje



A sutileza dos contos 
de Katherine Mansfield perdura até hoje

Por Luma Pereira
19. 01. 2013

“A única escrita que eu invejei”, declarou a escritora inglesa Virginia Woolf sobre as histórias de Katherine Mansfield. Os contos curtos e que sempre trazem uma descoberta que transcende a banalidade do cotidiano influenciaram também nossa autora brasileira Clarice Lispector.

“Existia entre Katherine e Virginia uma relação de admiração mútua, baseada numa amizade irregular, feita de alguns encontros e duma sensação persistente de cumplicidade, mas também de saudável rivalidade”, comenta Alda Correia, professora da Universidade Nova de Lisboa, que tem um trabalho sobre K. Mansfield.

Há quem diga que Virginia jamais teria escrito sua obra mais conhecida, Mrs. Dalloway (1925), se não fosse pela influência da amiga. Certa vez, ambas leram Ulysses (1918-1920), do escritor irlandês James Joyce, e discutiram a obra juntas.

Nascida na Nova Zelândia, em 1888, a autora se mudou para a Inglaterra em 1902. A princípio, não foi atraída pela literatura, mas pela música: era violoncelista. Apenas em 1906, ao voltar para sua terra natal, é que começou a escrever contos e fazer amizades no meio literário.

Costumava utilizar material autobiográfico de sua infância na Nova Zelândia – a depressão e a morte do irmão, soldado na Primeira Guerra Mundial, por exemplo –, além da experiência como estudante na Alemanha e na Inglaterra.

Escreveu uma coletânea de histórias a partir de um fato de sua vida: quando jovem, foi mandada para a Alemanha para ter o bebê que concebeu com o músico Garnet Trowell –e lá, hospedou-se numa pensão. A criança nasceu morta, e ela escreveu os contos de In a German Pension (1911).

K. MANSFIELD, A CONTADORA DE HISTÓRIAS

Considerada Modernista pela época –ela até se autodeclarou assim para a revista Rhythm, que coeditava com o marido, John Middleton Murry –, os principais temas de suas histórias eram o isolamento, a solidão, a dificuldade de apreensão e a transitoriedade da verdade.

Kathleen Jones, que escreveu a biografia Katherine Mansfield: The Story-Teller(2010), diz que Katherine nunca desperdiçava uma palavra sequer. “As histórias têm a habilidade de transportar o leitor para a vida de outras pessoas – e também ao si mesmo secreto”, comenta ela, em entrevista ao SaraivaConteúdo.

“Mansfield construía com apuro seus contos, com epifanias, nos quais muitas vezes a ação era mínima”, descreve Alexandre Barbosa de Souza, tradutor da obra Contos, lançadapela Cosac Naify em 2005. A história se desenrola a partir de fatos banaisdo dia a dia.

“Ela procura criar uma atmosfera a partir de uma determinada realidade, evocando ações ou sentimentos, descrevendo percepções, mas também ilusões e os seus efeitos”, comenta Alda. O conto Bliss (do inglês, “Felicidade”) é um dos mais conhecidos da autora e parte de uma ação aparentemente sem importância – a protagonista organiza um jantar em sua casa.

A epifania – que ela chamou de “glimpse”, isto é, vislumbre – é outro elemento presente nos contos. “É o momento em que, segundo a autora, toda a vida da alma está contida e o tempo se suspende”, conta Alda.

É essa epifania que a aproxima de Clarice Lispector, segundo Alda. “Ambas escreviam histórias com monólogo interior e frequentemente utilizavam também ‘epifanias’ como o momento central das narrativas”, comenta Kathleen.

Influenciada principalmente por O. Wilde e A. Tchekov,ela conquistou seu lugar na literatura mundial. Também o cinema a inspirou: as produções mudas que estavam começando a aparecer na época. The Black Cap é um conto que ela escreveu em forma de script de filme.

Viver 34 anos parece pouco, mas ela conseguiudeixar uma vasta obra composta de contos, além de ter feito críticas sociaissobre a condição social feminina em seus escritos. Dia 9 de janeiro (2013) é aniversário de 90 anos de sua morte por tuberculose –mas a sutileza dos contos ainda perdura.

SARAIVA



DRAGON

KISS
Cuentos

Poemas




domingo, 20 de dezembro de 2015

Madame Bovary / A mulher que vivia acima das suas necessidades




Madame Bovary

A mulher que vivia acima das suas necessidades


Uma leitura curiosa, mas demasiado cerebral - nada nesta Bovary transpira a paixão.

É preciso “tê-los no sítio” para se abalançar a uma adaptação cinematográfica da Madame Bovary de Flaubert, seguramente um dos romances clássicos mais referenciados e citados de sempre.



A francesa radicada nos EUA Sophie Barthes, de quem conhecíamos um muito interessante Alma Perdida (2008), tem uma ideia bem interessante para abordar a história, à qual faz alterações significativas: a sua Emma Bovary (que aqui nunca chega a ser mãe) é uma miúda inexperiente e ingénua que nunca conheceu outra coisa que não a austeridade e que se deixa seduzir pelo desejo e pelo materialismo, que se deixa arrastar impulsivamente pelas suas fantasias de ser uma senhora da sociedade. Barthes filma uma Mia Wasikowska como vítima trágica de uma sociedade patriarcal do consumo que lhe mete na cabeça ideias aspiracionais e depois a castiga por viver “acima das suas necessidades” (Rhys Ifans é impecável no seu senhor Lheureux que é autêntica serpente tentadora).
É uma leitura curiosa, mas demasiado cerebral; nada nesta Bovary transpira a paixão e o fogo de uma mulher que se abandona ao destino e ao amor, fica-se apenas pelo acompanhamento implacável de uma espiral destrutiva da qual não há saída possível.



sábado, 19 de dezembro de 2015

Brasileiro é coprodutor de 'Love', sexo em 3D que escandaliza Cannes


Brasileiro é coprodutor de 'Love', 

sexo em 3D que escandaliza Cannes

Melodrama explícito das relações sexuais de diretor francoargentino decepcionou críticos


Cena de 'Love'. / WILD BUNCH
Love estava programado para o escândalo e cumpriu sua obrigação. O novo trabalho de Gaspar Noé, o cineasta francoargentino que dirigiu títulos como Irreversível e Enter the Void, já se transformou em um dos filmes que passam à história do festival de Cannes. O filme é uma coprodução de Rodrigo Teixeira, um dos produtores brasileiros mais importantes hoje, que resume a trama em “esperma, fluídos e lágrimas". A expectativa, construída por meio de uma inteligente campanha de marketing, estava no máximo. O que explica que as filas tenham sido quilométricas na Croisette: até três horas de espera, com massas de espectadores frustrados ficando de fora. Sua forma explícita e (supostamente) realista de retratar o sexo não esfriou os compradores, muito pelo contrário. A produtora Wild Bunch anunciou nesta quinta-feira que o havia vendido a 36 mercados em todo o mundo, incluindo os Estados Unidos, onde a distribuidora Alchemy pretender lançá-lo em sua versão integral, apesar de submeter-se à classificação NC-17, veneno assegurado para a bilheteria, que já foi dada a títulos como Vício Frenético,ShowgirlsA Má EducaçãoShame ou Desejo e Perigo.
O primeiro plano do filme anuncia emoções fortes: o pênis ereto do protagonista, um expatriado norte-americano em Paris, ejacula em direção ao espectador (e para maior escárnio, em três dimensões). Sucedem-se diversos planos-sequência de vários minutos, espalhados por duas horas e 15 minutos, que buscam reproduzir com fidelidade a verdadeira natureza do coito heterossexual. Seus protagonistas, encarnados por três jovens atores, esbeltos e não profissionais (Karl Glusman, Aomi Muyock e Klara Kristin), se acasalam repetidamente em modalidades distintas –em dupla, em trio, em grupo – antes de passar à introspecção psicológica, a refletir sobre a frustração que a vida familiar acarreta ou meditar sobre o significado oculto da existência.


Seu diretor deu explicações nesta quinta-feira, diante dos órgãos da mídia, sobre a vontade que o seu filme expressa: romper definitivamente um tabu que impera no cinema desde sua invenção. “Tenho amigos que gostam do dinheiro, outros gostam de cocaína e outros preferem o cinema. O que todos têm em comum é que todo mundo gosta de praticar o sexo”, explicou Noé. “Por que está tão mal representado no cinema? Tem a ver com pressões do tipo comercial e legal”, acrescentou o diretor. Para quem pedia explicações sobre o caráter explícito de algumas cenas, Noé respondeu: “Fiz um filme sobre o amor, não sobre a banca suíça nem a Cientologia.
O diretor artístico do evento, Thierry Frémaux, também defendeuLove dos ataques. “Noé fez um filme que alguns amam e outros odeiam. A literatura e a pintura enfocam a questão da representação do corpo, do sexo e do amor físico, mas muito poucos diretores fizeram algo assim nos 120 anos de história do cinema”, disse ele, para justificar a inclusão de Love no programa do festival de Cannes, onde foi projetado fora da competição.
Love marca um novo capítulo na história de amor entre o festival e os filmes concebidos para o escândalo. Em quase toda a edição um filme aparece no programa oficial para semear o pânico entre os credenciados. De fato, a película foi produzida pelo todo-poderoso Vincent Maraval, que também se encarregou de tornar possível AVida de Adèle, ganhadora da Palma de Ouro em 2013. Na edição do ano passado, Maraval marcou outro tento com Bem-Vindo a Nova York, inspirada nas andanças de Dominique Strauss-Kahn no Sofitel nova-iorquino. No passado, outros filmes provocaram escândalos parecidos, como Crash – No LimiteBaise-moi, o já citadoIrreversível ou The Brown Bunny, com sua legendária cena de felação no final, que quase termina com a carreira de Chloë Sevigny. O falecido Roger Ebert, figura de proa da crítica norte-americana, o qualificou como “o pior filme na história de Cannes”. Seu diretor,Vincent Gallo, respondeu chamando-o de “porco gordo com físico de comerciante de escravos”.


Gaspar Noé, segundo à esquerda, com seu trio de protagonistas: Aomi Muyock, Klara Kristin e Karl Glusman. / GETTY
Por ora, a crítica reagiu ao filme com um entusiasmo bastante moderado. Peter Bradshaw, ilustre crítico deThe Guardian, afirmou que “se vê bem que um homem heterossexual dirigiu o filme”, ressaltando também “sua ênfase com as camisinhas” e o quão respeitável se torna o protagonista masculino na cena em que dorme com um transsexual. Mas o crítico também o define como “um filme que mostra o sexo de verdade, essa coisa que se usa para fazer bebês”, em lugar de aderir “à sensualidade tímida e ao glamour” que reina na maior parte do cinema comercial. Para a Indiewire, nota-se que foi terminado no último momento. “Parece uma versão fragmentada de um filme mais interessante”, afirmou seu crítico Eric Kohn, que acrescentou que lhe falta “substância” e disse que está “semiacabado” e “mal escrito”. De sua parte, a revista francesa Les Inrockuptibles falava nesta quinta-feira de “escândalo programado”, elogiando mais “a hábil campanha de marketing” do que as qualidades em si de Love, qualificado de “rígido” e “aterrorizado” ante qualquer indício de alteridade ao modelo heterossexual.