terça-feira, 8 de abril de 2014

Marguerite Duras / O amante da China do Norte


Marguerite Duras
O amante 
da China do Norte




«É um livro.
É um filme.
É a noite.


A voz a falar aqui é a voz escrita do livro.
Uma voz cega. Sem rosto.
Muito nova.
Silenciosa.
É uma rua a direito. Iluminada por candeeiros a gás.
Empedrada, dir-se-ia. Antiga.
Ladeada por árvores gigantes.
Antiga.



Dos dois lados desta rua há vivendas brancas com terraços. Delimitadas por gradeamentos e por parques.


É um posto no mato, no sul da Indochina francesa.
É em 1930.
É o bairro francês.
É uma rua do bairro francês.
O cheiro da noite é o cheiro do jasmim.
Misturado com o cheiro enjoativo e doce do rio.


Vai alguém a andar ali à frente. Não é quem está a falar.
É uma rapariga muito nova, ou talvez uma criança. Tem ar de ser. Ágil. Está descalça. Elegante. Talvez demasiado magra. As pernas... sim... É isso. Uma criança. Já crescida.
Vai a andar em direcção ao rio.


Ao fundo da ria, aquela luz amarela dos candeeiros de petróleo, aquela alegria, os gritos, os cantos, os risos, realmente é o rio. O Mékong.
É uma aldeia de juncos.
É o princípio do Delta. Do fim do rio.


Perto da rua, no parque que fica ao lado, aquela música que se ouve é de um baile. Vem do parque da Administração geral. Um disco. Esquecido, sem dúvida, a rodar no parque deserto. (...)


É o rio.


É a barca no Mékong. A barca dos livros.
Do rio.
Na barca está o carro para os indígenas, estão os Léon Bollée, pretos, compridos, e os amantes da China do Norte a olhar.

A barca parte.
Depois da partida a criança sai do carro. Olha para o rio. Também olha para o Chinês elegante que está dentro do enorme carro preto.
Ela, a criança, maquilhou-se, vestiu-se como a rapariga dos livros: tem o vestido de seda indígena de um branco amarelecido, o chapéu de homem de “infância e inocência” de aba direita, de feltro macio cor de madeira clara com uma fita negra e larga, os sapatos de baile, muito usados, completamente cambados, de lamé negro se não se importam, com motivos de “strass”...
Da limusina preta sai outro homem que não é o do livro, outro Chinês da Manchúria. è um pouco diferente do chinês do livro: um pouco mais forte do que ele, mais audacioso. Mais bonito, mais saudável. É mais “de filme” que o do livro. E também é menos tímido com a criança. (...)


Ele é um Chinês. Um Chinês alto. Tem a pele branca dos Chineses do Norte. É muito elegante. vem como fato de tecido de seda crua e alça sapatos ingleses cor de acaju como os jovens banqueiros de Saigão.
Ele olha para ela.
Olham um para o outro. Sorriem. Aproximam-se.
Ele fuma um 55. Ela é muito nova. Há um pouco de medo na mão a tremer quando ele lhe oferece um cigarro, mas não é quase nada.
– Fuma?
A criança fez um gesto: não.
– Desculpe... É tão inesperado encontrá-la aqui... Não imagina...


A criança não responde. Não sorri. Olha intensamente para ele. Feroz seria a palavra para dizer aquele olhar. Insolente. Sem maneiras é como diz a mãe: “não se olha assim para as pessoas”. Tem ar de quem não ouve bem o que se lhe diz. Olha para a roupa, para o carro. Em volta dele percebe-se o perfume da água de Colónia europeia e, mais afastado, o do ópio e da seda, da seda crua, do âmbar da pele. Ela olha para tudo. Para o chauffeur, para o carro, e outra vez para ele, para o Chinês. Sente-se a infância daqueles olhares de curiosidade desloada, sempre surpreedente, insaciável. Ele vê-a olhar para todas as novidades que a barca transporta naquele dia.
A curiosidade dele começa ali.(...)


É aqui, foi depois daquele riso que a história se inverteu.


Deixam de rir. Olham para outro lado. Lá fora, a perder de vista, os campos de arroz. O vazio do céu. O calor lívido. O Sol encoberto.
E por toda a parte pequenas estradas para as carroças de búfalos conduzidas por crianças.
Estão na penumbra do carro, os dois fechados.
Foi aquela paragem do movimento, de falar, aqueles falsos olhares para a monotonia exterior, a estrada, a luz, os campos de arroz até ao mais raso do céu, que fizeram esta história calar-se a pouco e pouco. (...)


Olham lá para fora.
Olham para o oceano de campos de arroz da Cochinchina. A planície de água atravessada pelos pequenos sulcos estreitos e a direito das carroças das crianças. O inferno do calor imóvel, monumental. A perder de vista a lisura fabulosa e sedosa do Delta. Mais tarde a criança há-de falar de um país indeciso, de infância, das Flandres tropicais mal separadas do mar.                                                     
Atravessam a imensidão sem se falarem. (...)


Olham lá para fora, chegam à cidade.


Iam separar-se. Ela recorda-se de como falar era difícil, cruel. O desejo era muito forte e tornava as palavras impossíveis de encontrar. Não tinham voltado a olhar um para o outro. E evitaram as mãos, os olhos. Foi ele quem impôs o silêncio. Ela depois disse que em si mesmo aquele silêncio, as palavras que afastava, a sua pontuação, e a distracção, e o jogo também, a infância desse jogo e daquelas lágrimas, tudo poderia ter levado a decidir imediatamente que se tratava de um amor. (...)


A dor chega ao corpo da criança. Primeiro é uma dor viva, depois terrível. Depois contraditória. Não há mais nada igual. Nada: e realmente é quando essa dor se torna insuportável que começa a afastar-se. A transformar-se, a tornar-se apropriada para gemer, para gritar, a agarrar o corpo inteiro, da cabeça, toda a força do corpo, da cabeça, e o do pensamento, arrasado. O sofrimento abandona o corpo magro, a cabeça. O corpo continua aberto para o exterior. Foi ultrapassado, sangra, deixou de sofrer. Isto já não se chama dor, talvez se chame morrer.
E depois nesse sofrimento abandona o corpo, abandona a cabeça, abandona insensivelmente toda a superfície do corpo e perde-se numa felicidade ainda desconhecida de amar sem saber.


Ela recorda-se. É a última a recordar-se, ainda. A ouvir, ainda, o barulho do mar no quarto. de ter escrito isso também se lembra, como do barulho das ruas chinesas. Até se recorda de ter escrito que o mar estava presente nesse dia no quarto dos amantes. Tinha escrito as palavras: a palavra: simplesmente, e a palavra: incomparável. (...)»


Nenhum comentário:

Postar um comentário